Monday, February 4, 2013

ETILISMO E ELITISMO


(Escrito há alguns anos atrás, porém ainda relevante)


Por Carlos de Paula

O economista Mario Henrique Simonsen era uma das unanimidades dos anos 60 a 80 no Brasil. O brilhante professor era considerado por quase todos, até seus críticos, brilhante. Pouco importou que suas mirabolantes teorias não salvaram a economia do Brasil, de fato, pode-se argumentar que pioraram a situação. Assim mesmo as o adjetivo brilhante e Simonsen pareciam ser inexoravelmente casados. As outras duas grandes paixões de Simonsen eram a música clássica e um scotch bem servido. O homem entendia tanto do primeiro assunto que era frequentemente convidado a escrever longos e rebuscados artigos sobre música clássica em diversas e importantes publicações. Quanto ao segundo quesito, parecia entender, e diziam, consumir com tão intensa liberalidade.

Nunca vi ninguém sugerir que Mario Henrique Simonsen fosse um mal profissional, ou que os objetos de sua paixão fora da ciência o desqualificassem para o exercício de um cargo, seja ou não público. Lembrem-se, o homem era supostamente tão qualificado que fez parte do Conselho de Administração do Citibank, numa época em que este tinha uma posição política relativamente mais forte do que hoje, apesar de sua menor escala, e muito mais xenófobo.

Antes de continuar meu raciocínio, devo dizer que não sou petista ou lulista. Portanto, não me acusem de partidarismo pelo que vou dizer.

Hoje existem leis no Brasil que proíbem o preconceito racial, o que é uma excelente coisa. Sinal de que a nossa sociedade evoluiu bastante, pelo menos no papel. Gostamos de dizer que não há preconceito racial no Brasil, mas isso não é verdade. Existe e muito. Atualmente uma pessoa pensa duas vezes antes de deslanchar um ataque verbal contra uma pessoa de outra raça, pois seu ato pode leva-lo a ver o sol nascer quadrado. Mas apesar dessa evolução, ainda temos preconceitos imensos em diversas áreas, principalmente o preconceito social, que não é devidamente enquadrado no ordenamento jurídico da nação.

Lembro-me de uma entrevista nas páginas amarelas da Veja, com o sambista Zeca Pagodinho. A entrevista enfatizou muito o trabalho social feito por Zeca no bairro onde mora, além de abordar outros aspectos da sua vida profissional e pessoal. O entrevistador deu um golpe final, e obviamente intencional, ao perguntar ao sambista quais foram os assuntos de uma recente conversa que Zeca tivera com o presidente Lula. O sincero músico respondeu que os assuntos foram “cachaça e samba”.

Muito me preocuparia se o Presidente tivesse revelado segredos de Estado ao pagodeiro. Ou então, pedido conselhos sobre uma futura reunião com o atrapalhado Presidente Chavez, sobre as abaladas relações com os Estados Unidos, ou se pedisse para dar uma olhada no orçamento, fazer alguns cortes e sugerir um novo Embaixador para o Japão. Não, o presidente conversou sobre cachaça e samba.

Suponho que muitas pessoas consideravam Simonsen brilhante por que quando começava a discorrer sobre economia, reduzia conceitos em rocambolescos polinômios e derivativas, ininteligíveis até para os mais espertos ou preparados dos seus interlocutores. Muitos provavelmente fingiam entender o que significavam o bando de “x” e “y” e letras gregas, abanando incessantemente a cabeça com ar de compenetrada e consciente anuência com o brainstorming to qualificado intelectual. Ou seja, a alcunha de “brilhante” tinha tanto a ver com a óbvia e quantificável capacidade do professor, como com a ignorância da maioria da humanidade em relação ao assunto. Afinal, quando você não entende o que uma pessoa está dizendo, há duas opções: a chama de louca ou de brilhante.

Nunca vi ninguém dizer na lata, ou sugerir, que ao balbuciar coisas em economês que ninguém entendia, Simonsen estivesse com muito Chivas ou Johnny Walker, Stravinsky ou Debussy na cabeça. Atribuía-se o monólogo ininteligível à sua óbvia capacidade acadêmica e intelectual, pouco importando que muitos dos seus experimentos, na prática, tenham dado errado.

Entretanto, quando descobriu-se que Lula e Zeca Pagodinho conversaram sobre cachaça e samba, imediatamente deduziu-se que o Presidente tem muito álcool e música popular no cérebro para ocupar o cargo máximo da nação.

Quando faltam argumentos racionais para se combater alguma pessoa, descamba-se para o preconceito. Quando uma pessoa não se enquadra no nosso ideal de “tchurma”, na nossa tribo, o preconceito é a arma usada. Assim é que a exploração de um suposto lado sambista e cachaceiro do presidente de origens humildes nada mais é do que preconceito social na sua mais feia forma. Na falta de argumentos que requerem um embasamento técnico ou factual, e cansativas explicações, desqualifica-se o presidente com base meramente nas suas paixões “de gentinha”. A música e a bebida não desqualificavam Simonsen por que eram gostos finos, sinal de apurado requinte e background. Este continuava brilhante, apesar dos seus gostos, aquele continua “gentinha”, por causa dos seus.

Criticar o governo e governantes faz parte do processo democrático, quando a discussão é fundamentada em fatos e conceitos que transcendem os gostos, ou até hábitos etílicos pessoais do governante. Nesse ponto, embora não tenha o mínimo de inclinação petista ou lulista, vejo-me forçado a defender o (agora ex-)Presidente, pois o argumento em pauta é completamente falho.

Afinal de contas, porre é porre. Seja de scotch, champagne francesa, xarope para tosse ou de cachaça. 

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